Há temas que não se escolhe escrever: eles te atravessam, te invocam, te tomam pela pele e pelos poros até que tudo em você se reordene.
Paternidade é um desses temas. Não como doutrina, não como discurso, mas como experiência visceral que, ao longo de duas décadas, tem sido para mim ritual de renascimento.
Ser pai, para além de qualquer título, é o espaço onde a minha humanidade se revela com mais clareza – e onde também se fratura e se reconstrói, dia após dia.
Não trago este tema por vaidade, tampouco por presunção de ter respostas. Trago porque a paternidade me rasga. Porque me ensina sem pedir licença. Porque, ao mesmo tempo em que me exige coragem, também me oferece cura.
Trago este tema porque, ao nomear os caminhos que percorri e ainda percorro com meus filhos, nomeio também os processos profundos que me tornaram um homem em constante desconstrução.
Ser pai me obriga a me rever. Me obriga a me reaprender. Me obriga, sobretudo, a sentir.
E é nesse sentir – cru, nu, insistente – que reside o ouro desta jornada.
Minha filha mais velha chegou como quem inaugura uma nova era. Eu tinha pouco mais de vinte anos e carregava comigo um plano: filhos apenas depois dos quarenta, quando, supostamente, eu seria um homem pronto. Mas os filhos não chegam quando estamos prontos – eles chegam para que a gente aprenda o que significa, de fato, estar vivo. Gabriella nasceu num tempo em que eu ainda tateava meu próprio reflexo no espelho, em que a vida se movia entre dúvidas e pressa, entre noites longas e medos camuflados.
Sua chegada não foi um evento de agenda: foi um abalo sísmico na alma.
A partir dela, palavras como “responsabilidade” e “compromisso” deixaram de ser apenas frases soltas em manuais e ganharam carne, urgência, peso. Mas também beleza.
Porque ser pai da Gabriella foi, por muito tempo, ausência – e também olhar de frente para a dor que esta ausência gerou. Em sua fala madura (e nem sempre generosa), ouvi verdades que me desafiavam a revisitar o homem que fui – e a escolher, com firmeza, a criatura que desejo ser.
E como é difícil admitir que, mesmo querendo, não estive.
Que, mesmo amando, não fui o abrigo necessário. Que não fui suficiente. Mas há uma força potente em reconhecer isso. Uma força que me empurra ao que é essencial: crescer, sem desculpas, sem atalhos. Gabriella, com sua luz firme e independente, me ensina que vulnerabilidade também é parte de minha existência. Que ser pai não é sobre estar no controle – mas sobre estar disponível para escutar o que não se disse, para reparar o que não foi possível antes, para continuar escolhendo o amor mesmo onde a falha deixou sua marca.

Quando a Luna chegou, já havia em mim um pouco mais de chão. E, mesmo sem planejamento, sua vinda não foi um susto – foi um chamado. Um símbolo de fortificação entre mim e a mulher com quem partilho a vida, o teto, os rituais. Luna trouxe consigo uma energia estruturante, intensa e luminosa. Um portal que nos exigiu (e nos exige), não apenas como pais, mas como casal, como criadores de um espaço onde o amor não seja apenas sentimento, mas arquitetura viva.
Lembro de uma noite em particular, quando ela, aos sete anos, se recolheu em silêncio após ouvir, escondida, um diálogo em que eu e minha esposa discordávamos. Sua dor silenciosa na janela, as lágrimas contidas, o abraço que veio depois – tudo isso me atravessou como faca e me reconstruiu como semente. Não era sobre o que dissemos: era sobre como o silêncio fala alto para quem escuta com o coração exposto. E ali entendi que ser pai também é tornar as fragilidades visíveis, é ensinar que o conflito faz parte, que a discordância não é o fim, mas o exercício da escuta em movimento.
Ser pai da Luna é um convite constante à transparência.
É aprender que os filhos não querem ver perfeição: querem verdade.
Querem saber que seus pais se amam mesmo quando não se entendem. Que estão juntos, mesmo quando caminham em ritmos diferentes. Que podem construir uma ponte, mesmo quando o abismo da dúvida parece grande demais.

Então veio Noah. E com ele, uma nova travessia.
Planejado, desejado, celebrado com mãos dadas e olhos esperançosos. Mas ainda assim, o nascimento de Noah não poupou a vida de seu rito de iniciação. Foi parto difícil, quase fatal.
Fui arrancado da sala de parto enquanto o mundo parecia desmoronar. Do lado de fora, só o som do seu choro – um choro que parecia não acabar nunca. E eu, mais uma vez, frágil, impotente, esperando por uma notícia, por um gesto, por uma nova chance.
Nos dias que se seguiram, Noah chorou por muitas noites. Por meses. Acordava a cada duas horas pedindo pela mãe. E eu, ali, me perguntando como ser necessário sem ser exigido. Como ser presença sem ser a primeira escolha. Foi só com o tempo – com as brincadeiras, com a comida dividida, com o colo insistente – que ele me reconheceu como porto. Como abrigo. Como riso.
Com ele, descobri que paternidade não está no “evento”, mas no gesto miúdo.
Que o que forma um pai não é a grande lição dada: mas o modo como se arqueia a sobrancelha, o tom das palavras pequenas, o jeito como se olha ou se silencia. O menino observa o pai. E o pai precisa, então, observar a si mesmo. Não com culpa, mas com radical presença. Com o desejo de ser melhor, sempre.
Noah me ensina, diariamente, o que é ser um homem que rompe com os moldes do que foi ensinado.
Que afrouxa as armaduras do masculino herdado e constrói, junto com o filho, uma nova forma de existir. Mais livre, mais doce, mais justa.
Ser pai dele é meu compromisso com o futuro, mas também com o passado. Com os meninos que eu fui, com os homens que me marcaram, com os silêncios que agora eu posso, enfim, quebrar.
Gabriella, Luna, Noah: três nomes, três reinos, três espelhos.
Cada um à sua maneira, me ensinando que a vida não acontece em planos bem traçados, mas em pulsares que exigem alma.
Ser pai, para mim, é antes de tudo um caminho de escuta. De lapidação. De “refação”.
E se há algo que quero deixar como legado (não com palavras, mas com atitudes), é a capacidade de alcançar impacto com empatia. De gerar transformação com escuta ativa. De tocar realidades com presença.
Como pai, como designer, como escritor, como homem – desejo que tudo o que eu fizer seja ponte. Entre mundos, entre tempos, entre pessoas.
Que cada projeto que eu assine, cada história que eu conte, cada estratégia que eu desenhe, traga consigo a delicadeza de quem sabe o valor de cuidar.
Porque, no fim das contas, paternidade é isso:
um chamado constante à presença. Um altar cotidiano de afeto. Um ofício sagrado onde os dias mais simples guardam as lições mais eternas.
E eu, com todas as minhas falhas, escolho (sempre!) estar aqui.
Presente.
Inteiro.
Transformado.
